domingo, 7 de março de 2010

A Via-Sacra e a Piedade Popular



Neste tempo da Quaresma uma das mais difundidas manifestações da piedade popular é a Via-Sacra. É uma prática devocional muito querida de nosso povo, que faz memória da Paixão do Senhor acompanhando-o no percurso que vai do Horto das Oliveiras ao Monte Calvário e ao Santo Sepulcro. O testemunho principal de quanto este exercício é caro aos católicos são as inúmeras “Vias Sacras” erigidas nas igrejas, jardins e colinas ao redor do mundo.


Como surgiu a Via-Sacra? 


Durante a Idade Média as visitas à Terra Santa cresceram em número de viagens e de peregrinos. O homem medieval era, por excelência, o Homo viator, o viajante, o peregrino, que está neste mundo, mas caminhando para os céus. Este profundo sentimento de transitoriedade alimentou as práticas devocionais relacionadas às romarias. Jerusalém era, desde o início, um dos destinos favoritos.


Mas já desde o IV século há informações seguras de viagens de devotos aos Lugares Santos, para fazer penitência nos locais da vida terrena de Jesus. O relato mais conhecido é o da Peregrinação de Etéria (ou Egéria), que descreve os ritos litúrgicos da Igreja de Jerusalém ao longo de todo o ano, com ênfase para o Santo Tríduo.


A Via-Sacra é a expressão de todas as devoções medievais à Paixão do Senhor condensadas em uma única prática: peregrinação à Cidade Santa, devoção às “quedas” do Senhor, às suas dores no caminho (Via dolorosa), às “estações” (paradas) de Cristo rumo ao Calvário, etc.


Em sua forma tradicional, composta de XIV estações, a Via-Sacra estava formada já na primeira metade do século XVII. Ela foi difundida por toda a Europa principalmente pelo franciscano São Leonardo de Porto Maurício (1676-1751).


Este santo frade impunha-a muitas vezes como penitência sacramental e erigia as suas estações em todas as missões que pregava. Ao final de sua vida contam-se, apensa na Itália, 571 povoados nos quais S. Leonardo estabeleceu a Via Crucis.


Mesmo em Roma deve-se a este santo a popularidade deste pio exercício. Se hoje o Santo Padre, o Papa, na noite da Sexta-feira Santa, percorre a Via-Sacra no Coliseu é porque São Leonardo, no Ano Santo de 1750, conseguiu que o papa Bento XIV lhe permitisse erigir a Via Crucis ali. Ele escreveu à época: “Estou ficando velho. (...) De toda maneira, consola ver que o Coliseu deixou de ser um lugar de atração para converter-se em um verdadeiro santuário...".


Espiritualidade da Via-Sacra 


A Via-Sacra contém em si os elementos fundamentais de várias expressões da espiritualidade cristã. Ora, se “espiritualidade” é a busca de viver impulsionado pelo mesmo espírito de Jesus, então a Via Crucis, como imitação do caminho do Calvário, conduz os fiéis a imitarem também sua entrega amorosa, no mesmo espírito de doação e sacrifício de Cristo.

Ela resume também a espiritualidade da peregrinação, do Homo viator, como já dissemos: a vida é caminhada, é o percorrer as estradas desta vida rumo à Pátria definitiva. Mas é também expressão visível da Sequela Christi, do seguimento de Cristo: “Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Mais do que a imitação teatral, trata-se de – também por expressões externas, mas antes de tudo internas – assumir espiritualmente a cruz do discipulado e da missão.

Isto nos é recordado na oração de bênção das estações da Via-Sacra: 


Ó Deus, o vosso Filho foi entregue por nós e ressuscitou, para que nós, morrendo ao pecado, vivêssemos para a justiça; vinde, pela graça da vossa bênção, conceder a estes fiéis, que celebram o piedoso exercício da vossa paixão, carregando sua cruz com paciência, possam alegrar-se, um dia, com a revelação da vossa glória. Por Cristo, nosso Senhor. Amém. (Ritual de Bênçãos, Cap. XXXIV, n. 1109).

Algumas orientações da Igreja


O pio exercício da Via-Sacra é uma devoção aprovada oficialmente pela Igreja, recomendada aos fiéis e enriquecida com indulgência plenária. Para isto, e para que ela produza adequados frutos espirituais, a Igreja nos oferece algumas instruções:
  • A Via-Sacra deve conter quatorze cruzes, que podem ser acompanhadas ou não de imagens/quadros que recordem as cenas do caminho da Paixão (cf. Ritual de Bênçãos, Cap. XXXIV, n. 1098; cf. CNBB, Manual das indulgências, “Via-Sacra”).
  • As meditações de cada estação não precisam ser as tradicionais, mas podem-se utilizar outros textos aprovados, desde que digam respeito a episódios evangélicos da Paixão do Senhor (deve-se recordar que algumas estações provêm da Tradição, não sendo narradas nos Evangelhos, como, por exemplo, a cena de Verônica; cf. Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Diretório sobre piedade popular e liturgia, n. 134);
  • O movimento (caminhar), seja de todos os devotos, seja do dirigente apenas, é imprescindível para que o sentido espiritual da Via-Sacra seja experimentado. “Um desenvolvimento sábio da Via-Sacra, em que palavra, silêncio, canto, caminhar processional e parada reflexiva se alternem de modo equilibrado, contribui para a consecução de frutos espirituais dessa prática de piedade.” (Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Diretório sobre piedade popular e liturgia, n. 135).

Há ainda outro ponto. Muitos subsídios para este pio exercício acrescentam uma XV estação, que faz memória da Ressurreição. Ao contrário do que se poderia imaginar, tal prática não é abusiva, mas aprovada e, de certo modo, recomendada pela Igreja. Citamos novamente o Diretório (n. 134): 


A Via-Sacra é a prática de piedade relativa à Paixão de Cristo; entretanto, é oportuno que se conclua de tal maneira que os fiéis se abram à espera, cheia de fé e de esperança, da ressurreição; a exemplo da parada na Anástasis, no final da Via-Sacra em Jerusalém, pode se encerrar a prática de piedade com a memória da ressurreição do Senhor.

De fato, já a “Peregrinação de Etéria” (séc. IV) faz referência a tal statio na Anástasis (o Santo Sepulcro) após a memória da Paixão do Senhor na Sexta-feira Santa.

E os pés descalços?


Em nossa Diocese o exemplo de Dom Gilberto durante a Via-Sacra na manhã de Sexta-feira Santa na Catedral de Fátima chamou a atenção de muitos. Fazendo o piedoso exercício com os pés descalços, Dom Gilberto levou muitos católicos a fazerem o mesmo. Mas qual a origem deste gesto?

A origem remota é a celebração da Sexta-feira da Paixão do Senhor em Roma. O imperador Constantino, após a descoberta dos restos da Cruz de Cristo por Santa Helena, sua mãe, transformou o palácio em que ela residia em igreja. É a atual Basílica de Santa Cruz em Jerusalém, em Roma. Durante séculos foi nela que o papa celebrou a liturgia da Paixão (era a statio desse dia).

Para essa celebração, na qual as relíquias da Santa Cruz eram veneradas, o papa dirigia-se em procissão, acompanhado dos cardeais e demais membros do clero romano, com os pés descalços.

Este costume foi estendido para todo o rito romano. Até a publicação do Missal de Paulo VI (1969), todos os presbíteros e bispos (e, por costume, também os diáconos e subdiáconos) faziam a veneração da Cruz descalços. Hoje esse gesto ainda é previsto pelo Cerimonial dos Bispos (n. 322):  o bispo, retirando a casula e, se considerar oportuno, os sapatos, aproxima por primeiro para a veneração da cruz. É uma cena profundamente marcante ver um bispo ou o papa retirar os paramentos e os calçados, para com toda humildade adorar no madeiro quem despojou-se de sua glória para nos salvar. 

Que nesta Santa Quaresma ao participarmos da Via-Sacra em nossas comunidades, estejamos imbuídos do espírito de doação e entrega de Cristo, do desejo de segui-lo até as últimas consequências, do arrependimento sincero de nossos pecados que fizeram pesar a cruz de nosso Senhor e, também, de solidariedade com os sofredores de nosso tempo.

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