segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Do “Missale Romanum” ao “iMissal”? A Liturgia e a Técnica na Pós-modernidade




Recordo-me que, no ano passado, quando vi pela primeira vez alguém rezando o Ofício Divino por meio de um iPad, deixando de lado o tradicional volume da Liturgia das Horas, fiquei meio espantado. Eu e outros seminaristas comentávamos: “Será que ainda veremos um padre ‘passando as páginas’ do Missal em um tablet também”? Recordo-me de um de meus professores, hoje bispo, que dizia: “Eu prefiro o meu bom e velho breviário. O contato com as páginas dele para mim é importante também”. O assunto voltou à tona essa semana, quando li em diversos blogs o comentário feito pelo Pe. Antonio Spadaro, jesuíta diretor da revista “La Civiltà Cattolica” e membro do Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, em seu site “CyberTeologia” sobre a decisão dos bispos neozelandeses (tomada em abril deste ano) de proibir o uso do iPad e similares em substituição do Missal Romano.
As imagens disponíveis na internet que mostram celebrações eucarísticas em que tal recurso tecnológico já foi aplicado demonstram, para além das críticas, como a nossa boa vontade, o nosso desejo de aggiornamento, nos faz transpor algumas “barreiras” simbólicas sem, talvez, nos darmos conta do alcance do fato. Mas, antes da reflexão, voltemos ao caso que ensejou a circulação no mundo inteiro, em diversas línguas, da decisão da Conferência dos Bispos Católicos da Nova Zelândia. Para isso, damos a conhecer o teor da carta enviada pelos bispos dessa Conferência Episcopal aos seus padres:


CONFERÊNCIA DOS BISPOS CATÓLICOS DA NOVA ZELÂNDIA

30 de abril de 2012

Queridos padres

Desde a publicação do Missal Romano para o uso na Nova Zelândia nós recebemos muitas questões acerca do uso de iPads ou outros tablets, e-readers, e telefones celulares pelo padre no lugar do Missal durante a Missa ou outras liturgias.
Os bispos consideraram esta matéria com atenção e observaram o que está acontecendo em outros países.
Toda fé tem os seus livros sagrados, que são reservados para seus rituais e atividades que estão no coração da fé. A Igreja Católica não é diferente, e o Missal Romano é um dos nossos livros sagrados. Sua forma física é um indicativo de sua função especial em nosso culto.
O Missal é reservado para o uso durante a liturgia da Igreja. Os iPads e outros equipamentos eletrônicos possuem uma variedade de usos como jogar, usar a internet, assistir vídeos e verificar e-mails. Somente isso já torna o seu uso inapropriado na liturgia.
A Conferência dos Bispos Católicos da Nova Zelândia tomou a seguinte decisão sobre o uso de aparelhos eletrônicos no lugar do Missal. Esta decisão aplica-se para todos os padres das dioceses da Nova Zelândia:
Com a publicação do Missal Romano, surgiram grande número de aplicativos do Missal para iPad e outros tablets, para celulares e e-readers.
Embora tais aplicativos sejam excelentes para fins de estudo, o iPad (e seus equivalentes), e-readers e telefones celulares não podem ser usados pelo padre na liturgia.
Somente a versão oficial impressa do Missal Romano pode ser usada na Missa e demais liturgias da Igreja.

+John Dew
Arcebispo de Wellington
Presidente da NZCBC

+ Patrick Dunn
Bispo de Auckland
Secretário da NZCBC

+Denis Browne
Bispo de Hamilton

+Colin Campbell
Bispo de Dunedin

+Charles Drennan
Bispo de Palmerston North

+Barry Jones
Bispo de Christchurch

+Peter Cullinane
Bispo Emérito de Palmerston North

 A questão, como se nota, vai muito além da utilidade e da conveniência. Não se trata de uma questão de “andar em dias”, de estar aggiornato, na “última moda da Big Apple” (não a empresa de Jobs, mas New York). As razões aduzidas pelos bispos dizem respeito à própria natureza e dignidade da Liturgia, e relacionam-se com a essência do culto cristão e a função dos diversos elementos materiais nele utilizados.
Como observa o padre Antonio Spadaro, os bispos neozelandeses notaram que “com a expansão da leitura digital, o ‘texto’ destaca-se permanentemente da sua ancoragem sólida na realidade material da ‘página’. Em que consiste, de fato, o desafio posto pelas telas aos ‘textos sagrados’? Antes do mais em que o texto torna-se um ‘objeto’ fluido: o exato oposto das ‘tábuas da lei’ e do provérbio scripta manent (o que é escrito permanece). Não só: o texto litúrgico pode facilmente desaparecer do suporte para dar lugar a vídeos, e-mails, páginas da internet, outros aplicativos. O ‘texto’ se destaca da realidade material da ‘página’ para ‘flutuar’ na tela, mas sem jamais coincidir com ela”. Ou seja, a relação íntima entre a palavra escrita e a página – eternizada, por exemplo, nos Evangeliários e Livros de Horas repletos de iluminuras, em que a mensagem e o meio de apresentação se misturam quase num paralelo da Encarnação – vê-se truncada nos equipamentos eletrônicos modernos. Os pixels da tela de um tablet são, por assim dizer, voláteis, passageiros, descartáveis: em um toque apenas, cedem o lugar a outras informações.
De certo este é um reflexo da condição humana pós-moderna: num mundo onde as relações são fluidas, a personalidade um mosaico caleidoscópico, o tempo é extremamente fugaz, os valores são relativos e nada é definitivo, por qual razão as palavras deveriam possuir um status de perenidade (ou quase)? A palavra experimenta a mesma realidade pós-moderna, dissolvendo-se na transitoriedade de um click, entrando no jogo do descartável, dos contínuos upgrades (ou da planned obsolescence, a obsolescência programada). Não se escrevem mais palavras stilo ferreo et plumbeo, in aeternum in silice – “com estilete de ferro e com chumbo, esculpidas em granito” –, como pedia Jó... Hoje se escrevem palavras com números binários.
A Liturgia, que torna presente as realidades eternas (SC 8) através de sinais sensíveis (cf. SC 59), não pode cair nesse mesmo jogo, e isso por sua própria natureza. Enquanto se exige para as matérias sacramentais a correspondência à “verdade do sinal” (p. ex. IGMR n. 321), não podemos supor que as palavras – elemento importantíssimo nos sacramentos – possam entrar em tal processo de “descartalização”.
A propósito disso, a Instrução Geral do Missal Romano é bem clara: “Deve-se cuidar de modo especial que os livros litúrgicos, particularmente o Evangeliário e o lecionário, destinados à proclamação da Palavra de Deus, gozando, por isso, de veneração peculiar, sejam na ação litúrgica realmente sinais e símbolos das realidades celestes, e, por conseguinte, verdadeiramente dignos, artísticos e belos” (IGMR, n. 349). O Livro em si é um símbolo, é um sinal da dignidade da Liturgia.
A Comissão Episcopal de Pastoral Litúrgica da CNBB também teve de andar às voltas com a relação técnica-celebração litúrgica, emitindo em janeiro de 2011 uma nota com o título “O uso do projetor multimídia na liturgia – elementos para reflexão”. A CEPL tomou uma posição corajosa, que corre o risco de ser depreciada como retrógrada, fixada em ideias do passado, ao apontar os equívocos da utilização de tais equipamentos nas celebrações litúrgicas. No caso do projetor de multimídia há justificativas ecológicas (não utilizar mais folhetos de papel), economia (o projetor seria mais barato), do ponto de vista da eficiência e da preocupação pastoral. Uma a uma elas são desmontadas, revelando o primado da técnica, do uso da tecnologia de ponta (que tem prazo marcado para ser substituída...) sobre a sacramentalidade, a ritualidade e participação ativa dos fiéis. Seria interessante retomar esse texto da CNBB para compreender também alguns aspectos da proibição dada pelos bispos da Nova Zelândia.
Os comentários à postagem de Pe. Antonio Spadaro, no seu site CyberTeologia, são eloquentes quanto à sedução da técnica. Muitos questionam se não estamos caindo numa idolatria do livro, como se o elemento material formado por páginas de papel encadernadas fosse um objeto por si mesmo sagrado. Enquanto os bispos neozelandeses apontaram a multiplicidade de usos possíveis para os aparatos tecnológicos do mesmo tipo dos tablets e smartphones como um dos elementos que os tornam inaptos para o uso litúrgico, houve quem questionasse o fato de que também a folha de papel pode ser usada para outros fins e assim também o livro seria inadequado para o uso litúrgico. Há aqui uma grande confusão: uma folha, genérica, pode realmente ter uma multiplicidade de usos, mas a folha do Missal Romano, específica, já está em uso, contendo permanentemente o texto a ser empregado na Liturgia, de modo que qualquer outro uso da folha do Missal é uma rasura, um borrão, um acréscimo indevido. A folha do Missal foi impressa para servir como folha do Missal, enquanto a tela do tablet foi produzida para ter uma multiplicidade de funções.
O acento da questão foi invertido, apontando-se para o fato de que as versões não são oficiais. Este não é o ponto fulcral: ainda que os textos sejam completamente fiéis às versões oficiais, o fato é que o instrumento é inapto, por não conseguir alcançar uma das condições exigidas pela introdução do Missal: “sejam na ação litúrgica realmente sinais e símbolos das realidades celestes”. Neste sentido, o Livro, com sua solidez, inclusive sua “fixidez” (em oposição à “fluidez” da tela), a sua elaboração artística, contribui para a compreensão da dimensão sacramental do rito litúrgico.
Alguém, nos comentários, insinuou que durante outra revolução tecnológica, a da imprensa, surgiu um instrumento de combate: o Index Librorum Prohibitorum. Os tablets, e-readers e smartphones estariam sendo inscritos num novo Index? Não é esse o caso. A tecnologia em si não é condenada. Ao contrário, deve ser empregada eficazmente como instrumento de evangelização. O próprio papa Bento XVI recordou, há poucos anos no Dia Mundial das Comunicações Sociais, que também os presbíteros devem fazer-se presentes nas diversas redes sociais como evangelizadores. Agora, evangelizar tendo a tecnologia como aliada não é sinônimo de empregá-la indiscriminadamente, em todas as ocasiões. Qual a função “evangelizadora” de substituir um Missal por um iPad? Há aqui muito mais uma questão de comodidade... Mas busca pelo mais cômodo, pelo confortável, pelo menor esforço não é também uma expressão do pensamento individualista pós-moderno?
Para concluir, dois adendos.
Primeiro. Recordei-me de um texto que havia encontrado há vários anos atrás, que reproduz a inscrição deixada por um padre em seu velho breviário: “Vai, meu querido breviário velho, vai para o teu novo destino... Recebe, antes de partir, o meu beijo carinhoso de despedida... Fiel companheiro de todos os meus dias, eu aqui fico cheio de saudades das tuas queridas páginas amarelecidas de rolar pelos meus dedos... Vai... mas antes de partir pede a Deus - meu saudoso breviário velho - pede a Deus que o novo breviário tenha a mesma sorte que tiveste no meu coração... Adeus!”. Não consigo imaginar a mesma relação entre um padre e o seu “tablet velho”...
Segundo adendo. Trata-se de um questionamento que me veio em mente. Os judeus, até hoje, conservam uma grande veneração pela Torah. Ela é conservada em grandes rolos de pergaminho (sifrei Torah) guardados nas sinagogas em uma estante especial (hekhal). Para a leitura, é usada uma estante própria (tebá) e, geralmente, também um indicador de leitura, com o formato de uma mãozinha (yad), que percorre o texto sagrado sem que o leitor precise tocá-lo com as próprias mãos. Há, de fato, uma grande solenidade no rito da leitura da Torah na comunidade judaica. Não consigo imaginar os mesmos ritos com a leitura feita a partir de um tablet. Será que os judeus guardariam um tablet que contivesse somente o aplicativo da Torah dentro da estante (hekhal)? Acho difícil. Certamente eles não abririam mão do simbolismo dos rolos da Torah...
E nós, católicos, estamos dispostos a abrir mão de nossos símbolos em favor da técnica?

* * *

Melhor assim: rezando com o Breviário...



... e tweetando com o tablet!



De volta à ativa...

O Blog Ars Celebrandi passou um longo (muito longo...) tempo sem atualizações. Resolvi voltar aos poucos a publicar de novo. Por enquanto alguns projetos continuarão parados (como a história da Semana Santa). Mas trarei, possivelmente a cada semana, algum comentário sobre questões litúrgicas.
Espero que desta vez não haja contratempos!

Laersio