Recordo-me que,
no ano passado, quando vi pela primeira vez alguém rezando o Ofício Divino por
meio de um iPad, deixando de lado o tradicional volume da Liturgia das Horas,
fiquei meio espantado. Eu e outros seminaristas comentávamos: “Será que ainda
veremos um padre ‘passando as páginas’ do Missal em um tablet também”? Recordo-me de um de meus professores, hoje bispo,
que dizia: “Eu prefiro o meu bom e velho breviário. O contato com as páginas
dele para mim é importante também”. O assunto voltou à tona essa semana, quando
li em diversos blogs o comentário feito pelo Pe. Antonio Spadaro, jesuíta
diretor da revista “La Civiltà Cattolica” e membro do Pontifício Conselho para
as Comunicações Sociais, em seu site “CyberTeologia” sobre a decisão dos bispos
neozelandeses (tomada em abril deste ano) de proibir o uso do iPad e similares
em substituição do Missal Romano.
As imagens
disponíveis na internet que mostram celebrações eucarísticas em que tal recurso
tecnológico já foi aplicado demonstram, para além das críticas, como a nossa
boa vontade, o nosso desejo de aggiornamento,
nos faz transpor algumas “barreiras” simbólicas sem, talvez, nos darmos conta
do alcance do fato. Mas, antes da reflexão, voltemos ao caso que ensejou a
circulação no mundo inteiro, em diversas línguas, da decisão da Conferência dos
Bispos Católicos da Nova Zelândia. Para isso, damos a conhecer o teor da carta
enviada pelos bispos dessa Conferência Episcopal aos seus padres:
CONFERÊNCIA DOS BISPOS CATÓLICOS DA NOVA ZELÂNDIA30 de abril de 2012Queridos padresDesde a publicação do Missal Romano para o uso na Nova Zelândia nós recebemos muitas questões acerca do uso de iPads ou outros tablets, e-readers, e telefones celulares pelo padre no lugar do Missal durante a Missa ou outras liturgias.Os bispos consideraram esta matéria com atenção e observaram o que está acontecendo em outros países.Toda fé tem os seus livros sagrados, que são reservados para seus rituais e atividades que estão no coração da fé. A Igreja Católica não é diferente, e o Missal Romano é um dos nossos livros sagrados. Sua forma física é um indicativo de sua função especial em nosso culto.O Missal é reservado para o uso durante a liturgia da Igreja. Os iPads e outros equipamentos eletrônicos possuem uma variedade de usos como jogar, usar a internet, assistir vídeos e verificar e-mails. Somente isso já torna o seu uso inapropriado na liturgia.A Conferência dos Bispos Católicos da Nova Zelândia tomou a seguinte decisão sobre o uso de aparelhos eletrônicos no lugar do Missal. Esta decisão aplica-se para todos os padres das dioceses da Nova Zelândia:Com a publicação do Missal Romano, surgiram grande número de aplicativos do Missal para iPad e outros tablets, para celulares e e-readers.Embora tais aplicativos sejam excelentes para fins de estudo, o iPad (e seus equivalentes), e-readers e telefones celulares não podem ser usados pelo padre na liturgia.Somente a versão oficial impressa do Missal Romano pode ser usada na Missa e demais liturgias da Igreja.+John DewArcebispo de WellingtonPresidente da NZCBC+ Patrick DunnBispo de AucklandSecretário da NZCBC+Denis BrowneBispo de Hamilton+Colin CampbellBispo de Dunedin+Charles DrennanBispo de Palmerston North+Barry JonesBispo de Christchurch+Peter CullinaneBispo Emérito de Palmerston North
A questão, como
se nota, vai muito além da utilidade e da conveniência. Não se trata de uma
questão de “andar em dias”, de estar aggiornato,
na “última moda da Big Apple” (não a
empresa de Jobs, mas New York). As razões aduzidas pelos bispos dizem respeito
à própria natureza e dignidade da Liturgia, e relacionam-se com a essência do
culto cristão e a função dos diversos elementos materiais nele utilizados.
Como
observa o padre Antonio Spadaro,
os bispos neozelandeses notaram que “com a expansão da leitura digital, o
‘texto’ destaca-se permanentemente da sua ancoragem sólida na realidade
material da ‘página’. Em que consiste, de fato, o desafio posto pelas telas aos
‘textos sagrados’? Antes do mais em que o texto torna-se um ‘objeto’ fluido: o
exato oposto das ‘tábuas da lei’ e do provérbio scripta manent (o que é escrito permanece). Não só: o texto
litúrgico pode facilmente desaparecer do suporte para dar lugar a vídeos,
e-mails, páginas da internet, outros aplicativos. O ‘texto’ se destaca da
realidade material da ‘página’ para ‘flutuar’ na tela, mas sem jamais coincidir
com ela”. Ou seja, a relação íntima entre a palavra escrita e a página – eternizada,
por exemplo, nos Evangeliários e Livros de Horas repletos de iluminuras, em que
a mensagem e o meio de apresentação se misturam quase num paralelo da
Encarnação – vê-se truncada nos equipamentos eletrônicos modernos. Os pixels da
tela de um tablet são, por assim dizer, voláteis, passageiros, descartáveis: em
um toque apenas, cedem o lugar a outras informações.
De
certo este é um reflexo da condição humana pós-moderna: num mundo onde as
relações são fluidas, a personalidade um mosaico caleidoscópico, o tempo é
extremamente fugaz, os valores são relativos e nada é definitivo, por qual
razão as palavras deveriam possuir um status
de perenidade (ou quase)? A palavra experimenta a mesma realidade pós-moderna,
dissolvendo-se na transitoriedade de um click,
entrando no jogo do descartável, dos contínuos upgrades (ou da planned
obsolescence, a obsolescência programada). Não se escrevem mais palavras stilo ferreo et plumbeo, in aeternum in
silice – “com estilete de ferro e com chumbo, esculpidas em granito” –, como
pedia Jó... Hoje se escrevem palavras com números binários.
A
Liturgia, que torna presente as realidades eternas (SC 8) através de sinais
sensíveis (cf. SC 59), não pode cair nesse mesmo jogo, e isso por sua própria
natureza. Enquanto se exige para as matérias sacramentais a correspondência à
“verdade do sinal” (p. ex. IGMR n. 321), não podemos supor que as palavras –
elemento importantíssimo nos sacramentos – possam entrar em tal processo de
“descartalização”.
A
propósito disso, a Instrução Geral do Missal Romano é bem clara: “Deve-se
cuidar de modo especial que os livros litúrgicos, particularmente o
Evangeliário e o lecionário, destinados à proclamação da Palavra de Deus,
gozando, por isso, de veneração peculiar, sejam na ação litúrgica realmente
sinais e símbolos das realidades celestes, e, por conseguinte, verdadeiramente
dignos, artísticos e belos” (IGMR, n. 349). O Livro em si é um símbolo, é um
sinal da dignidade da Liturgia.
A
Comissão Episcopal de Pastoral Litúrgica da CNBB também teve de andar às voltas
com a relação técnica-celebração litúrgica, emitindo em janeiro de 2011 uma
nota com o título “O uso do projetor multimídia na liturgia – elementos para
reflexão”. A CEPL tomou uma posição corajosa, que corre o risco de ser
depreciada como retrógrada, fixada em ideias do passado, ao apontar os
equívocos da utilização de tais equipamentos nas celebrações litúrgicas. No
caso do projetor de multimídia há justificativas ecológicas (não utilizar mais
folhetos de papel), economia (o projetor seria mais barato), do ponto de vista
da eficiência e da preocupação pastoral. Uma a uma elas são desmontadas,
revelando o primado da técnica, do uso da tecnologia de ponta (que tem prazo
marcado para ser substituída...) sobre a sacramentalidade, a ritualidade e
participação ativa dos fiéis. Seria interessante retomar esse texto da CNBB
para compreender também alguns aspectos da proibição dada pelos bispos da Nova
Zelândia.
Os
comentários à postagem de Pe. Antonio Spadaro, no seu site CyberTeologia, são
eloquentes quanto à sedução da técnica. Muitos questionam se não estamos caindo
numa idolatria do livro, como se o elemento material formado por páginas de
papel encadernadas fosse um objeto por si mesmo sagrado. Enquanto os bispos
neozelandeses apontaram a multiplicidade de usos possíveis para os aparatos tecnológicos
do mesmo tipo dos tablets e smartphones como um dos elementos que os tornam
inaptos para o uso litúrgico, houve quem questionasse o fato de que também a
folha de papel pode ser usada para outros fins e assim também o livro seria
inadequado para o uso litúrgico. Há aqui uma grande confusão: uma folha, genérica, pode realmente ter
uma multiplicidade de usos, mas a
folha do Missal Romano, específica, já está em uso, contendo permanentemente o
texto a ser empregado na Liturgia, de modo que qualquer outro uso da folha do
Missal é uma rasura, um borrão, um acréscimo indevido. A folha do Missal foi
impressa para servir como folha do Missal, enquanto a tela do tablet foi
produzida para ter uma multiplicidade de funções.
O
acento da questão foi invertido, apontando-se para o fato de que as versões não
são oficiais. Este não é o ponto fulcral: ainda que os textos sejam completamente
fiéis às versões oficiais, o fato é que o instrumento é inapto, por não
conseguir alcançar uma das condições exigidas pela introdução do Missal: “sejam
na ação litúrgica realmente sinais e símbolos das realidades celestes”. Neste
sentido, o Livro, com sua solidez, inclusive sua “fixidez” (em oposição à “fluidez”
da tela), a sua elaboração artística, contribui para a compreensão da dimensão
sacramental do rito litúrgico.
Alguém,
nos comentários, insinuou que durante outra revolução tecnológica, a da
imprensa, surgiu um instrumento de combate: o Index Librorum Prohibitorum. Os tablets, e-readers e smartphones
estariam sendo inscritos num novo Index?
Não é esse o caso. A tecnologia em si não é condenada. Ao contrário, deve ser
empregada eficazmente como instrumento de evangelização. O próprio papa Bento
XVI recordou, há poucos anos no Dia Mundial das Comunicações Sociais, que
também os presbíteros devem fazer-se presentes nas diversas redes sociais como
evangelizadores. Agora, evangelizar tendo a tecnologia como aliada não é
sinônimo de empregá-la indiscriminadamente, em todas as ocasiões. Qual a função
“evangelizadora” de substituir um Missal por um iPad? Há aqui muito mais uma
questão de comodidade... Mas busca pelo mais cômodo, pelo confortável, pelo
menor esforço não é também uma expressão do pensamento individualista
pós-moderno?
Para
concluir, dois adendos.
Primeiro.
Recordei-me de um texto que havia encontrado há vários anos atrás,
que reproduz a inscrição deixada por um padre em seu velho breviário: “Vai, meu
querido breviário velho, vai para o teu novo destino... Recebe, antes de
partir, o meu beijo carinhoso de despedida... Fiel companheiro de todos os meus
dias, eu aqui fico cheio de saudades das tuas queridas páginas amarelecidas de
rolar pelos meus dedos... Vai... mas antes de partir pede a Deus - meu saudoso
breviário velho - pede a Deus que o novo breviário tenha a mesma sorte que
tiveste no meu coração... Adeus!”. Não consigo imaginar a mesma relação entre
um padre e o seu “tablet velho”...
Segundo
adendo. Trata-se de um questionamento que me veio em mente. Os judeus, até
hoje, conservam uma grande veneração pela Torah. Ela é conservada em grandes
rolos de pergaminho (sifrei Torah) guardados nas sinagogas em uma estante
especial (hekhal). Para a leitura, é usada uma estante própria (tebá) e,
geralmente, também um indicador de leitura, com o formato de uma mãozinha
(yad), que percorre o texto sagrado sem que o leitor precise tocá-lo com as
próprias mãos. Há, de fato, uma grande solenidade no rito da leitura da Torah
na comunidade judaica. Não consigo imaginar os mesmos ritos com a leitura feita
a partir de um tablet. Será que os judeus guardariam um tablet que contivesse
somente o aplicativo da Torah dentro da estante (hekhal)? Acho difícil.
Certamente eles não abririam mão do simbolismo dos rolos da Torah...
E nós, católicos, estamos dispostos a abrir mão de nossos símbolos em favor da técnica?
* * *
... e tweetando com o tablet!
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